quinta-feira, 15 de abril de 2010

é preciso escrever para ler.

O desejo nos faz nunca idênticos a nós mesmos. A materialidade da folha nos transporta para além de nossos limites e suporta nos expressemos sem sermos interrompidos. O ato de escrever precisa ser exercido graciosamente, isto é, sem pretender tal ou qual objetivo, para que possa surpreender-nos como algo da ordem do inusitado, do saber inconsciente... produz uma significação circulante... uma significância que não tem ponto de partida nem ponto de chegada: ela circula disseminando sentidos (Machado, 1989, p. 157).

A pontuação, aliás, faz parte de nosso ofício de escrever. Exige-se a estrutura da escrita. Nela não só se reproduzem os ritmos da fala, mas por ela a escrita se faz significante, multiplicam-se os significados e se sustentam à espera das muitas leituras possíveis. As gramáticas nos ensinam a usar o que denominam de sinais de pontuação e que justificam pela necessidade de a escrita suprir suas deficiências de face aos recursos da fala, como a mímica, a entonação, os jogos de silêncio, as pausas. Acabo de verificá-lo recorrendo a um
tal de Faraco (1992, p. 366), que encontro na estante de minha filha, estudante do segundo grau. Um orador-escritor, o padre Antonio Vieira, via na pontuação indispensável complemento da escritura. E Leão Paulo Farge sustentava que o talento depende da vírgula bem-colocada. De sua vez os poetas, como Guilherme Apollinaire, se inclinam a dispensar a pontuação, estorvo da poesia, embora terminem por reconhecer que a pontuação sublima as virtudes da escrita (cf. Etiemble, 1973, p. 9). Embora, em seu "Manifesto Futurista", Marinetti houvesse decretado o máximo de desordem e a falência da pontuação, seu seguidor entre nós, Oswald de Andrade (1991, p. 44), opõe "legítimos embargos à violação das regras comuns da pontuação, de que resultariam lamentáveis confusões". Apercebo-me, nessa altura, da necessidade de regressar a meus escritos anteriores, sobre a centralidade dos saberes nas questões atinentes à educação. Ao mais recente deles, em que tentei sintetizar os demais e de que me despedi há dois dias, dei o título de: Educação/Interlocução, Aprendizagem/Reconstrução de Saberes (Marques, 1996a).

O escrever é isso aí: interlocução. Quais os interlocutores nesse ato aparentemente tão pessoal, solitário, reservado, silencioso? Os possíveis leitores que, parecendo tão distantes, já me estão espionando, indiscretos e metidos; os amigos a quem vou mostrando o que escrevo; os muitos autores que vão enriquecendo a listagem de minhas referências bibliográficas; os que estão com a mão na massa das práticas que busco entender.

Estou consciente de que a folha que dá suporte ao escrever o dará também a muitas leituras, divergentes, diferentes, isto é, que levem a muitos sentidos, contraditórios até. Em todo caso, divertidos, na dupla acepção que o Aurélio me autoriza. Do texto escrito cada leitor prazerosamente poderá fazer as leituras que quiser, as suas leituras, outras tanto das do escrevente, quanto das dos demais leitores. Faço um comparativo a Ranganathan, Bibliotecário indiano, grande expoente da Ciência da Informação – Biblioteconomia, em 1931 diz: “ Em 1928, cada dia mais envolvido com as questões biblioteconômicas, e cada vez mais preocupado com os princípios que poderiam nortear as atividades do profissional da informação, conta Ranganathan que, em uma noite em que colocou de lado todas as outras tarefas para concentrar-se nestas questões, encontra-se com seu antigo professor de Matemática, Edward B. Ross, a quem devia "todo o seu ser intelectual e por quem tinha grande afeição" (Satija) e expõe as suas angústias. Edward B. Ross, por essa relação estreita com Ranganathan, acaba por acompanhá-lo em sua nova esfera de trabalho. Dialogando com Ranganathan em um dado momento enuncia – "Diga, livros são para serem usados, diga que isso é a sua primeira lei". Assim, a enunciação das outras quatro leis ( a cada leitor o seu livro, a cada livro o seu leitor, poupe o tempo do leitor, a biblioteca é um organismo em crescimento) foi automática e a apresentação e divulgação das leis foi iniciada naquele ano em vários cursos e eventos na Índia.